Poderíamos resumir a perplexidade sartriana frente a esta questão da seguinte forma: “Nunca sou o mesmo, como poderia buscar a unidade de mim em uma fixidez qualquer, no caso, no conhecimento?”.
É célebre a retrospectiva realizada por Sartre em “A transcendência do Ego”, que poderíamos expô-la aforisticamente assim: Descartes ambicionou conter a indeterminação no imobilismo de uma substância, res cogitans. Kant, cioso da lógica e ciente do salto argumentativo cartesiano (que intuição temos para afirmar que somos substância?), apela a um engenhoso recurso formal, o sujeito transcendental.
Não se trata de aceitar que há homem e mundo, nem que o ser humano interfere no mundo, no mesmo sentido que é afetado por ele, mas – e essa é a novidade trazida por Sartre através da fenomenologia – que a realização humana e mundo estão imbricados, uma constituição e contaminação mútua e sem fim. Há um jogo tecido continuamente entre quem constitui e quem é constituído, a ponto de, rigorosamente, não ser possível sequer falar em humano sem mundo e mundo sem o humano. A própria nomeação de tais termos isolados já constituem uma abstração vazia.
Será no confronto com Husserl, em um movimento de parricídio teórico, que Sartre apontará seu caminho pela existência. Esse direcionamento para a existência se fará em conjunto com uma incorporação do humano. Dito de outro modo, o que unificará as minhas experiências não é o mundo propriamente dito, mas a relação instauradora que tenho com o mundo. Assim, constituição de si afasta-se tanto de um processo racional de conhecimento quanto de uma engenhosa, porém fantasiosa crença na somatória de experiências.
Pode parecer um tanto quanto simplório o deslocamento produzido por Sartre em um primeiro momento (mudança de uma estática para uma dinâmica), mas um olhar mais demorado nos fará perceber a refundação da questão da constituição de si como profundamente transgressora. Relação passa a expressar fissuras na integridade, infiltrações na estabilidade, ruína na edificação, ausência na plenitude, instabilidade no equilíbrio, movimento da estagnação. Reparem, insisto, não se trata de uma coisa ou outra, nem mesmo uma coisa seguida da outra, mas uma contaminação mútua. O que ocorre no tocante à questão da constituição é uma quebra de expectativa sobre uma matéria avessa a delimitações, a realidade humana.
(02 de Junho de 2022)