Por Marcelo S. Norberto
A cada crise instaurada, há um ímpeto natural de responder ao problema com a proposta de uma solução. Mas reconhecer a naturalidade da situação não significa dizer que há justeza em sua realização. Por vezes, oferecer prontamente uma solução nada mais é do que uma forma de encobrir e aprofundar o problema. Em uma época em que as crises se sucedem, ao ponto de termos a sensação de que crise é regra, e não exceção, pensar em como refletir sobre os problemas apresentados pelo nosso tempo, torna-se uma exigência ética.
O instinto muito comum dos momentos conturbados é o de procurar valores norteadores, mais antigos e alheios aos modismos culturais, capazes de suplantar os desafios atuais e, assim, nos servir como um guia estável para o viver. Esta pulsão de preservação, ao se mostrar lícita, contudo, não garante sua validade. Se afastarmos de um certo naturalismo social, que acredita na utilidade plena de todos os desejos e impulsos humanos – sabemos que o Laissez-faire nos aproxima mais de uma exploração desmedida do que de uma equidade sonhada – o que a realidade nos mostra, a despeito de nossos mais sinceros anseios, é a ineficácia de uma prescrição moral.
A moralidade entendida como orientação é fraudulenta, pois é inapta a fornecer o que promete. Afinal, não há base para se exigir ou indicar algo em detrimento de outro. Romper com tudo ou se manter firme em sua convicção não são posições intrinsicamente justas ou deploráveis; dependem severamente da circunstância na qual se está inserido. E dentro da situação posta, ainda assim, qualquer valoração dependerá gravemente da cultura vigente, dos costumes daquela sociedade específica, dos laços familiares e comunitários a que está preso no momento. Enfim, o que vemos é uma variedade de contingências históricas que impossibilitam qualquer julgamento minimamente justo em termos definitos.
Contudo, dizer que é fraudulenta, não quer dizer que inexista. Nossa cultura foi edificada tendo como base esta idéia de moralidade universal. Ela é real, produz efeitos contundentes em nossa sociedade e em seus integrantes. Por isso, parece ser pouco apenas desacreditá-la; é preciso estudá-la e entender seus mecanismos de funcionamento, pois essa moralidade está em vigor em nossa cultura, opera sobre nós e nos afeta cotidianamente. Nietzsche chamava este estudo de “o valor dos valores”. Sua questão orbitava em torno, não dos valores finais, aqueles que nos atingem a cada momento (de justiça, de correção, de igualdade); mas, dos valores que possibilitavam este ou aquele valor ter força de lei.
Por isso também, torna-se débil reduzir o problema da moral a uma mera sujeição das pessoas a um dogmatismo religioso. Ela serve antes à nós mesmos, ao nosso medo do acaso, da real falta de sentido da vida, do desamparo. A religião só trabalha essa questão de forma exemplar (ou divinamente, para aqueles que gostam de trocadilhos). Mas a política, as leis, a educação e mesmo a ciência também são edificadas em torno desta idéia de moralidade. A moralidade serve a nós como instâncias moderadora na cultura, tentando impedir que a gente veja a dor e o sofrimento naturais da vida. A moralidade, criada por nós e atribuída a Deus, ou a Natureza, ou a Razão, funciona como um véu de engano para as vicissitudes da vida. A intenção pode até parecer auspiciosa – afinal, negar a dor é uma tentação justificável –, mas os efeitos são desastrosos.
Toda moralidade, em sua lógica universal, é totalizante. Ou seja, ignora a singularidade, a diferença e, assim, acaba por negar a própria vida, que é, por essência, sem essência alguma. Este movimento presente na moral mostra uma face violente, justamente onde se espera encontra apenas o amor e a compaixão. Este colapso produzido no seio do acontecimento humano, ao transformar cada humano em um igual, em um rebanho, nos ameaça ao oferecer, como saída, o seu oposto. Ao tentar fugir desta planificação do ser, somos seduzidos a escapar da violência de uma moral prescritiva através da ingenuidade do individualismo. Do que adianta trocar o servilismo moral pela vã primazia da razão individual, se a vida continua a ser ignorada? Neste sentido, me filio à tese de Nietzsche: só há uma lógica aceitável: buscar unicamente valores que engrandeçam a vida, razões que potencializem a vida. É o Amor fati, amor ao destino, ao fatum, que nada tem a ver com determinismo, mas com o reconhecimento de um limite imposto pelo acaso, sobre o qual devemos agir. E, para tanto, é preciso empreender uma força plástica, criar meios outros, tomar a nossa vida como uma grande obra de arte. Será assim que faremos jus ao presente, à vida, a nossa vida.
(29 de MaIO de 2022)