Por Marcelo S. Norberto

 

Desde seus primeiros escritos até a monumental obra sobre Flaubert, todo o trabalho de Sartre parte de uma insistência em lidar com uma matéria que não é apta à resolução. Há uma positividade inquestionável nos arranjos humanos (sua concretude), que não pode ser reduzida a uma objetividade processual (sua negatividade). É em torno desta fenda primordial, deste embate entre naturezas inconciliáveis, contudo auto penetrantes, que a investigação filosófica parte e, de certo modo, se vê definida em sua efetivação. Este impasse no qual a filosofia orbita está presente em Sartre desde, por exemplo, a definição ontológica do homem como para-si, nesta nomenclatura extravagante capaz de referir-se a um movimento de circunscrição ineficiente que, no entanto, faz cintilar o sentido no mundo. Ou ainda, no dilema político presente no projeto de O Idiota da família (1971/1972), sem o qual a biografia de Flaubert não passaria de um exercício de erudição burguesa. Posto sem rodeios, Sartre nomeia a força e a armadilha da tarefa do pensar da seguinte maneira: “Mais c’est là le problème pratique – que je n’ai d’ailleurs pas encore bien résolu: comment se faire comprendre d’un public populaire en allant jusqu’au bout d’une idée”

O teatro surge para Sartre como expressão deste embate que forja o pensamento. É no reconhecimento de uma religiosidade intrínseca à dramaturgia, que o jovem pensador francês investirá em uma saída teatral para a conclamação das pessoas em torno de suas responsabilidades, recurso imposto pela inexistência de um valor supremo à vida. A religiosidade, quando retomada fora de sua conotação teológica e refletida pelo ateísmo sartriano, aponta para o jogo entre o humano e o sentimento de comunidade, para esta paridade irresoluta que permeia todos os negócios humanos. É neste intermédio entre a falta que é o homem e seu desejo de ser, definição precisa e aforística oferecida por Castro à Ontologia Fenomenológica, que as relações humanas são passíveis de um sentimento de congraçamento, que nada tem a ver com Deus ou Natureza, mas vividamente com o identificar no outro a possibilidade de ser e, ao mesmo tempo, a inviabilidade de comunhão. Em A república do silêncio (1945), Sartre fala deste tempo efêmero e, por causa disso, intenso, no qual os franceses teciam, entre as lacunas deixadas pela Ocupação nazista, um espaço efetivamente coletivo, uma promessa de uma “república sem instituições, sem exército, sem polícia”. Pertencimento germinada na violenta seara da realidade.

O teatro apresenta-se como palco para a exposição, reflexão e posterior engajamento de homem neste fenômeno coletivo que surge desta tensão entre cultura e existência. Longe da cooptação do indivíduo a uma causa, o que Sartre vislumbra na dramaturgia é a possibilidade de um reconhecimento duplo: do indivíduo no coletivo e no indivíduo do coletivo. Steiner designou este estratagema sartriano de “um regresso disciplinado ao vazio”, pois, livre de pendências ou determinismos, faz o homem se deparar com sua realidade plural e ambígua. Essa questão sempre esteve presente no pensamento sartriano, desde a idéia de solidariedade descrita em O ser e o nada (1943), passando pela exigência de uma empatia em O idiota da Família, até na polêmica noção de fraternidade em A esperança agora (1980).

Se o teatro não é a dissolução do particular no todo, mas convite para o empenho individual em um espaço público, a dramaturgia também não pode ser confundida com um recurso facilitador deste dilema existencial. Não é nem um rascunho ilustrado de um pensamento das alturas e, portanto, inacessível em sua profundidade, nem uma astuta sedução que apela aos sentimentos básicos para recrutar incautos ao embate violento da realidade. Despido de equívocos reducionistas, o teatro sartriano se coloca como a forma apta a fomentar e – isso é decisivo – reter as tensões entre pensamento e seu caráter civilizatório por um lado e, por outro, as pulsões irrefreadas da existência. Dito de outro modo, é no teatro que Sartre encontrará um ambiente de engajamento e de uma propensão revolucionária, não em nome de uma causa, mas dentro de uma perspectiva de uma humanidade. Assim, é possível verter para o teatro a definição dada por Sartre à literatura e nos defrontarmos com o mundo requerido pelo o autor: “Si la littérature n’est pas tout, elle ne vaut pas une heure de peine. C’est cela que je veux dire par “engagement”.

Este compromisso ontológico presente no teatro, bem como na literatura, justifica a centralidade da dramaturgia no pensamento sartriano. E em poucas obras haverá uma conjunção tão crítica entre a situação histórica, a expressão de uma cultura e a exigência de uma comunidade como em As moscas (1943). Esta peça encarna aquilo que Steiner considerou como o ápice da expressão artística, na rara captação da “totalidade de mundo histórico e fenomênico”. Na peça, Sartre se dirige à degeneração da sociedade francesa sob a ocupação alemã, ao Regime de Vichy e à resistência; à demanda de uma geração instituída entre Guerras, cujo ponto de inflexão era a ausência de valores norteadores; e, por fim, a um inesperado e insistente desejo de um estado vindouro. Enfim, trata-se de uma obra necessária.

(Trecho de A coragem de Electra: um teatro sartriano em “Sartre e a estética” (Editora PUC-Rio/Numa Editora – 2021))

(27 de Maio de 2022)

 

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