Há uma confusão em torno da liberdade que é perigosa e cujos efeitos são potencialmente desastrosos. Graças ao nosso apego à empiria, ao sentimento de certeza que a prática nos forneceu em milênios de evolução, temos a tendência de tomar a liberdade como posse. Há liberdade quando obtemos algo. Somos livres quando alcançamos o nosso objetivo. Em uma sociedade do consumo, esta impressão forjada na sobrevivência é transformada em verdade sob o signo da eficácia. O grau de equívoco se eleva, convertendo liberdade em sucesso. Em nossa cultura, ser livre é ser bem-sucedido.

Conformar a liberdade à posse é introduzir um determinismo avesso aos negócios humanos. Somos, de uma ponta à outra de nosso ser, uma abertura. Não importa nossa razão de interação, seja a natureza, seja a cultura, seja outro ser humano, estamos sempre tecendo uma trama de correlações que só atinge seu fim com a morte. Existimos, inelutavelmente, sob o signo performático da relação, o que fez com que Sartre dissesse que o homem não possui uma natureza, mas um drama.

Ao mesmo tempo que estamos expostos aos mais variados riscos do acaso, pelo modo de ser do humano, na mesma proporção, por outro lado, somos capazes de recomeçar a cada momento da vida. A liberdade é justamente essa incompetência de sermos determinados, seja pela vida, seja por nós mesmos. Assim, a liberdade é menos um capacidade humana e mais uma inaptidão reiterada. Somos livres por uma incompetência recorrente. Há, na condição humana, um nada insuperável que nos condena a nos fazermos a cada escolha, a cada ato, a cada instante de nossa vida. Nada mais distante de uma propriedade.

Se a confusão inicial já sobrecarrega a liberdade com parâmetros estranhos a ela, a transmutação presente em nossa cultura – liberdade como eficiência – acaba por oprimir gravemente a existência humana. Se é possível sustentar que gente é para brilhar, com diz a letra de Caetano Veloso, não é possível compactuar com o slogan predominante de que somos feitos para o sucesso. Concepção extraída de uma lógica fabril, a eficácia submete a liberdade a um empreendedorismo de si mesmo, ultrapassando os limites de um equívoco e se configurando em um efetivo ataque ao ser humano, ao seu modo de ser. Somos quem somos independente do lucro que possamos gerar, somos quem somos independente da fama que possamos ter, somos quem somos independente do sucesso que possamos alcançar. Se existimos independentemente desses totens contemporâneos, então não os somos. O que não podemos dizer das relações com a natureza, com as outras pessoas, com a arte ou com os outros seres vivos.

Mais grave do que o exercício da liberdade, aquilo que todos os governos autoritários e sociedades de controle tentam suprimir e veem como ameaça maior, é o que nossa cultura de massa vem realizando: verter a liberdade em propriedade desejável. Aproximar a liberdade de uma posse e transformar essa posse em cume de uma realização pessoal (não se trata mais da glória, de um entrar para história como a escolha que coube a Aquiles em Ilíada; mas uma mera fama, existência destituída de qualquer significado e sem relação alguma a feitos) é petrificar o movimento característico do humano, é negar, em sua origem, sua força criadora e, portanto, transformadora. Não somos pedra, não sabemos viver como pedra e não é possível dar sentido as nossas vidas como simples lápides do que poderíamos ter sido. Abdicar da liberdade é correr o risco de morrermos em vida.

 

Por Marcelo S. Norberto

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