Da vasta produção literária de Sartre, deste pensador-escritor, que causou impacto tanto na filosofia (por exemplo, “O ser e o nada” e “Crítica da Razão dialética”) quanto na literatura (por exemplo, o romance “A náusea” ou a coletânea de contos “O Muro”, sem falar no Nobel de Literatura de 1964, recusado, por sinal) uma trilogia se destaca: Os caminhos da liberdade. Composta por A Idade da Razão, Sursis e Com a Morte na Alma (ou o quarto volume A Última Oportunidade, que só conhecemos um capítulo publicado em Les Temps Modernes).

Publicados de 1945 a 1949 (A Idade da Razão e Sursis em 1945 e Com a morte na Alma em 1949), encarnam o esforço sartriano de participação em uma França pós-desocupação, de uma Europa do pós-guerra. Compreender essa inscrição histórica é relevante para uma leitura mais imersiva e, por conseguinte, mais contemporânea da obra, entendendo seu ponto de partida e então seu sentido.

Uma possibilidade de entendimento do projeto literário de Sartre, digo especialmente em relação aos Os Caminhos da Liberdade, passa pelo descortinar de um mundo novo após a tragédia da 2ª Guerra Mundial, em conjunto com desencanto com um ecumenismo político possível (um dos pontos que o distanciou de Albert Camus, até então amigo muito próximo). Sartre é claro em seu projeto: a questão será a liberdade humana, a sua realização, seu confronto com a realidade, sua responsabilidade e seu impacto no mundo.

O personagem central é Mathieu Delarue, um professor de filosofia, tomado pela angústia e pelo fracasso que o circunda. A novidade trazida por Sartre está na forma que apresenta literariamente essa questão e os efeitos desta apresentação na própria compreensão da liberdade humana. Não será investigando uma suposta interioridade, explicitando dilemas internos, ou ainda trazendo à tona conflitos psicológicos que a dramaturgia sartriana colocará em questão a liberdade humana.

O caminho percorrido por Sartre é outro. Sua literatura expressa uma outra percepção da realidade. Tomado por uma influência da Fenomenologia, mais especificamente munido da noção de intencionalidade, que expressa a idéia de que “toda consciência é consciência de alguma coisa”, Sartre abdica de qualquer hierarquia entre homens e mundo, se recusa a pensar isoladamente o ser humano da existência, a ponto de só poder se falar de consciência  se referindo a uma alteridade, conjuntamente com algo além da consciência: “a consciência (ou o ser humano, ou as pessoas em geral) é um ser para o qual, em seu próprio ser, está em questão o seu ser enquanto este ser implica outro ser que não si mesmo” (O Ser e o Nada, p. 35.)

A literatura de Sartre é um testemunho desta visão de mundo em que a relação se coloca como espaço de vida e a existência como o par irrevogável da humanidade. Este é o fascínio e, ao mesmo tempo, o desespero impressos nas páginas dos livros, que nos mostram, com uma transparência rude, as possibilidades infinitas do acontecimento humano.

Com a literatura, temos o privilégio de um espaço em que a liberdade se mostra em ação, atuando em situação, tecida em conjunto com a realidade, com as adversidades mundanas, com a contingência inevitável da vida. Não como uma ilustração, como um mero exemplo figurado de uma teoria apartada, desenvolvida isoladamente dos acontecimentos. Não. Mas como uma encarnação, expressão utilizada muito apropriadamente por Gerd Bornheim, como uma contaminação mútua, como um enlace entre indivíduo e coletivo, entre singularidade e vida, entre projeto de vida e cultura.

Ser francês, por exemplo, deixa de ser um conceito abstrato, vazio, uma constituição teórica de uma ciência geopolítica para se mostrar no confronto com a realidade. Se é francês em uma situação histórica, junto com outros, belgas, alemães, ingleses. A ponto de sua real percepção da nacionalidade não passar pelo território, pela cultura, pelo imaginário (caminhos que muitas vezes mais nos distanciam da efetividade da vida), mas por uma alegoria fisiológica, do corpo: “Agora a França está deitada de costas e nos a vemos” (em “Com a morte na alma). Esta é a força do recurso à literatura em Sartre. Não se trata de um mero palavrório, nem de um interminável rosário de conceitos que temos dificuldade de conectá-los à vida, mas de uma costura de um tecido em que cada nó constitui uma nova realidade e que em cada cesura abre-se o caminho para outra realização. A literatura não é nem espelho da teoria (submetida servilmente a ela) nem a repulsa do pensamento (como se dela fosse independente), mas o fazer de um pensamento que não se opera por argumentação, porém está em diálogo constante com a razão, de seu jeito, a partir de seu modo único de pensar.

Por Marcelo S. Norberto

Share via
Copy link
Powered by Social Snap